segunda-feira, dezembro 18, 2006

Dia das Crianças

Sol brilhando absoluto no céu, estômago reclamando as más condições alimentares até aquele horário, pé direito da sandália arrebentado. O dia não estava perfeito e para completar o ônibus que vai para o meu bairro saiu do ponto no mesmo instante em que cheguei.
Por isso, qualquer pessoa que se arriscasse falar comigo naquele momento certamente ouviria soar pela minha boca não mais que três fonemas – sim ou não – independente da pergunta. Tudo o que eu queria era chegar em casa. Diálogos estavam fora de cogitação.
Na tentativa de me esconder dos raios ultravioleta que pareciam incidir com mais intensidade sobre a minha cabeça, me afastei do aglomerado que se formava sob a cobertura do ponto de ônibus para ficar protegida pela sombra de uma árvore. Ali, além de não fritar, ninguém viria falar comigo.
Parecia estar verdadeiramente protegida até ouvir uma voz por trás de mim:
- O Vila Garcia já passou?
- Não – foi minha resposta imediata.
- Não passou ou você não viu?
- Não passou...ou não vi...sei lá...
Depois da minha resposta incerta, silêncio. Pensei que o alguém que estava a procura do “vila garcia”, tinha partido e não mais me incomodaria. Quando meu olhar se voltava novamente para a direção de onde vêm os transportes coletivos, ouço:
- Você ta brava, moça?
- Não.
- Tá com fome?
- Não – embora meu estômago continuasse reclamando a escassez de comida.
- O que é que você tem?
- Nada. Só não quero conversar.
- Você tá triste...
- Não, não é isso. Só quero ficar aqui quietinha. Pode ser?
Ainda sem mirar os olhos na direção do alguém que da procura pelo “vila garcia” passara a investigar minha vida, percebi tratar-se de uma criança, um garoto que, insistentemente, continuou:
- Que ônibus você vai pegar?
- O que vai para o meu bairro.
- E qual é o seu bairro?
Fiquei calada. Acreditei que a ausência de resposta faria o menino desistir daquele diálogo vazio. Alguns instantes de silêncio entre nós seguiram. Antes que eu percebesse o efeito positivo da minha atitude, fui rendida pelo garoto que, saltando a minha frente, disse:
- Quer comprar bala? Duas “tirinha” por um real.
Através dos meus óculos escuros vi um corpo miúdo, longos braços finos, pés calçando chinelos velhos maiores que seu número. A roupa surrada e uma caixinha de balas nas mãos completavam aquele personagem pouco original na crônica diária de qualquer cidade do país. O sentimento de culpa por tê-lo tratado com indiferença – não só naquele momento, mas de certa forma, desde que nascera – foi inevitável. Permitir que aquele diálogo, até então emperrado por minha causa, fluísse era a única forma de me redimir.
- Se eu comprar essa bala o que você vai fazer com o dinheiro?
- Nada...
- Como nada? Alguma coisa você vai fazer com o dinheiro, senão não estaria aqui vendendo.
- Com o seu 1 real não dá pra fazer nada, tia...agora, se você comprar a caixinha inteira, aí sim dá pra fazer um monte de coisa!, disse o garoto em tom de deboche.
- Ahh...espertinho você, hein. Quer que eu compre todas as suas balinhas. Digamos que eu compre todas elas. O que você vai comprar com o dinheiro?
- Pra que você quer saber, tia?, perguntou me olhando e franzindo a testa.
- Curiosidade. Você não estava curioso para saber onde eu moro, que ônibus eu vou pegar, por que eu estava quieta, etc, etc, etc.? (nesse momento o garoto dá um sorriso) Então...sou tão curiosa quanto você. Mas me diz: o que você vai comprar com o dinheiro?
- Não sei...
- Tem certeza?
- Não sei, tia...
- Mais balas?
- Não...
- Sorvete?
- Não...
- Hummm...brinquedo? Sim!!! Você vai comprar um brinquedo! Acertei!?
O menino riu, disse que eu era engraçada. A essa altura já não sabia mais se o ônibus que seguiria para o meu bairro havia passado. Aquela conversa tinha me feito esquecer as agruras daquele dia, até minutos antes, pouco prazeroso. Mas, apesar de já existir uma sutil confiabilidade entre nós, ele hesitava em dizer o que compraria com o dinheiro.
- Ta, tudo bem...não precisa me dizer.
- Não é droga, não tia...”num sô” moleque de rua, não...
- Nem pensei nisso...você é tão pequeno...parece meu sobrinho...
- Qual o nome dele?
- Gabriel...e o seu?
- Everton. Ninguém nunca perguntou meu nome. E o seu?
Estendi a mão para o garoto que assustou com o gesto e demorou alguns segundos para apertá-la. Novamente ele esboçou um sorriso e estendeu sua mão magra de dedos curtos.
- Prazer, Everton. Eu me chamo Fernanda, mas pode me chamar de Fer.
A partir de então o diálogo foi suspenso e meu monólogo predominou. Falei sobre o calor, comentei da semelhança física dele com meu sobrinho e...
- Uma boneca.
- O que?
- To juntando dinheiro para comprar uma boneca.
Meu rosto, já sem o escudo protetor dos óculos escuros, ficou vulnerável à sensibilidade do garoto que deve ter notado a minha surpresa. De fato não esperava essa resposta.
- Não assusta não, tia...opa! Tia não, Fer...eu gosto de é de “impinar” pipa. A boneca é pra minha irmã, a Larissa. Quero dar pra ela amanhã, “de” dia das crianças.
- Mas com o dinheiro dessa caixinha dá para comprar uma boneca?
- Não é só esse dinheiro. To juntando desde que ela fez aniversário em maio. Toda semana minha mãe me dá um real das balas que eu vendo. Toda semana não, porque tem semana que vende pouco, aí não dá. Mas quando a Lara fez aniversário pediu uma boneca e minha mãe não conseguiu comprar. Aí eu falei que eu ia dar uma “de” dia das crianças pra ela.
Sem perceber, Everton me deu um soco no estomago e fiquei algum tempo fora do ar. Quando recuperei os sentidos, perguntei sobre sua família, mãe, pai, irmãos. Descobri que, aos 10 anos, ele só freqüentou a escola até a segunda série, quando foi reprovado por falta. Fora matriculado no período da tarde, justamente melhor horário para vender a guloseima que ajuda compor a renda familiar. O pai não conhece, a mãe doméstica trabalha o dia todo e Larissa fica na creche do bairro em período integral. Os outros 5 irmãos se dividem entre vender balas, engraxar sapatos e trabalhar como ajudante nas feiras livres.
- Você já ganhou boneca “de” dia das crianças?
- Não...faço aniversário dia 6, sempre ganhei um presente só. Pro meu aniversário e pro dia das crianças.
A resposta saiu forçada. Everton é uma criança, não pode estar carregando a responsabilidade de ajudar no sustento da família e de realizar o desejo da irmã, apenas seis anos mais nova.
- E você? Quer ganhar alguma coisa no dia das crianças?
- Ah...papel de seda e bambu pra fazer pipa. Mas eu compro lá na lojinha onde vou comprar a boneca da Lara.
A semelhança com meu sobrinho, a realidade conhecida somente através de estatísticas ali personificada, a naturalidade do garoto ao narrar sua vida e a minha impotência para reverter toda aquela situação me fizeram lembrar o quanto é cruel viver entre desiguais e precisei recolocar os óculos escuros no rosto para esconder as lágrimas que emergiram, incontrolavelmente, dos meus olhos. Everton, distraído olhando o trânsito, não percebeu. Quando alguns ônibus se aproximavam, ele se voltou para mim:
- O Fer...cê vai comprar as bala? Acho que aquele é o vila garcia.
- Você sabe ler?
- Um pouco...mas ônibus vejo pelo número.
Rapidamente dei o dinheiro das balas para o garoto e recusei o troco. Repetindo o gesto que faço com as crianças da família, dei um beijo em sua testa. Everton ficou boquiaberto. Quando o ônibus encostou, ele partiu feliz com o dinheiro. Ou com o beijo. Ou com os dois, não sei. Entrou no veículo, pagou o cobrador com moedinhas e correu para a janela de onde gritou:
- Tchau, tia! Ihh...esqueci de novo...(riu)...Feeeeeeeer!!!
Ainda bastante atormentada por tudo aquilo, acenei. Quando o ônibus partia, Everton ainda teve tempo de gritar:
- Feliz Aniversário!!!!
Era dia 11 de outubro. Mas, ainda que tivesse dado tempo, eu jamais conseguiria lhe dizer “Feliz Dia das Crianças”.
* o fato acima é verídico. o texto foi escrito horas depois e publicado somente agora porque tenho notado que tem muita gente precisando perceber a existencia dos Evertons do país...

4 comentários:

Anônimo disse...

Sem comentários, minha amiga... eu só consegui sentir orgulho de vc e vergonha de mim!
Volto pra comentar o resto!
Saudade enorme já!
Bjs

Anônimo disse...

Amiga... Que lindo texto! Que fato chocante! Como você disse um soco no estômago. Espero que o Everton seja muito feliz. Bjos

Anônimo disse...

Uau!

Daniel Nérso disse...

Como são agressivos esses mendigos, meninos de rua e vendedores em semáforos. Tão agressivos q a gente tem q fugir pra não se machucar, pq senão nosso mundo azul e rosa pode rachar por alguns segundos e isso nunca é bom, ainda mais qdo vc se sente na necessidade de fazer algo a respeito. Então é melhor continuar longe deles, pra não ter q exigir uma atitude de si mesmo.

Mas uma vez estava discutindo com alguns amigos sobre uma "escolha". O que você escolheria, viver o resto da sua vida normalmente ou viver o dia em que uma pessoa mais se divertiu e foi feliz em relação a todas as outras pessoas. Chegamos a conclusão q com grande chance poderíamos viver o dia de um bebê de 2 anos em seu aniversário. Eu chego à conclusão agora de que se escolhesse a segunda opção, poderia facilmente viver o dia das crianças da Larissa, como do Everton.

Desculpa o comentário longo, mas é q eu realmente gostei do texto.